Risca a boca de baton diante do espelho, contorna - a neste dia mal amanhecido e já sem vontade de sorrir. Pincela as maçãs do rosto para dar cor ao desgaste da impaciência, do dia corrido, da necessidade de parecer bem.
Seca os cabelos à pressa, escova com movimentos mecânicos e já conhecidos, olha para o resultado final e dá-se por satisfeita. Olha em cima da cama desfeita o que vai vestir hoje. A saia sem graça, a blusa sóbria e o casaco que tudo tapa. Abre a primeira gaveta da cómoda e tira de lá umas cuecas. Parada ali diante do móvel, ela olha para essa peça de roupa que ninguém vê, macia, leve e de cor suave. Mas tão feminina e tão por si só a marca dela. São da cor da sua pele, cor de pêssego, disseram - lhe que ela tinha a pele assim: aveludada e da cor do fruto. Sorriu para si, lembrando da frase murmurada na penumbra do quarto...há quanto tempo foi isso?
Foi há tempo demais. Agora não há murmúrios na penumbra, há urgência em acabar, não se fala, não se seduz. São as horas, os filhos a rotina. O mesmo dia a dia, tudo igual, a hora que sai de casa, do transporte e o caminho. O trabalho rotineiro e estafante.
Pegou nas cuecas e esticou contra a luz o tecido transparente, rosado e fino.
"Onde foi parar a minha feminilidade? Onde ficou hipotecada a minha sensualidade?" pensou distraída. Começou a pensar melhor no assunto.
Porque no meio dessa vida corrida, debaixo das saias ou das calças fica sempre este lembrete colado na pele, a certeza de ser mulher. Mas ela por vezes, sendo funcionária, passageira, freguesa se esquece no meio destas etiquetas o seu lado de gente, de mulher.
Mesmo com a boca com baton cor de rosa, com o blush no rosto e aquele perfume na curva do pescoço...será que sou mais mulher?
Olhou para o relógio que reclamava das horas, e lembrou do autocarro lotado, dos olhares vazios dos passageiros de sempre. Do pára e arranca, do calor e da pressa de chegar a tempo de picar o ponto.
"São horas" pensou.
Hoje não vestiu os colants, mas as meias com ligas esquecidas no fundo da gaveta. Trocou a saia sem graça pela saia travada preta, a blusa sóbria... trocou pela blusa de seda cor de cereja. Subiu nos saltos altos do sapato preto. Dois brincos pequenos de ouro enfeitam as orelhas pequenas e atentas. Olhou-se no espelho satisfeita com o que viu. Não vai assim vestida para agradar ninguém, para chamar a atenção. Vestiu-se de mulher para si, para agradar - se.
Deu-se conta então, que não vestiu as cuecas cor de pêssego, ficaram jogadas em cima da cama ao lado do pijama. Olhou para elas, e com um sorriso de Mona Lisa, encontrou um cabide e coloco-as nele. Fez dessa peça de roupa intima o seu estandarte, o seu símbolo maior. Olhou para o quadro de uma natureza morta pendurada na parede do quarto e resolveu mudar de decoração.
E assim, o quadro de natureza morta deu lugar ao cabide com as cuequinhas cor de pêssego, bandeira da natureza da mulher. Pode não ser visível mas está sempre presente. E ficou ali, como tributo à feminilidade dela, atrasada mas já capaz de sorrir e...
...imaginando o que as pessoas diriam se soubessem que não levava nada por debaixo da saia travada...
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Foto : Stela Rato (escultura em madeira)
Letras : Rakel.
E é essa imaginação que faz milagres!!!!
ResponderEliminar...miúda, a imaginação e o sonho são a alavanca do mundo.
ResponderEliminarE entre coisas reais que vou contando por aqui, acho que cabe lugar para a imaginação...
Bjos