A Coragem Anónima


Perdi o meu primeiro filho com 14 semanas de gestação. Foi algo devastador pra mim e que fez colocar em dúvida as minhas capacidades como gaja e da justiça universal. Depois desse dissabor, depois de um batalhão de exames, fui encaminhada para o serviço de consulta externa do hospital, na ala das Gestações de Alto Risco. Na sala de espera, vi situações que, perante o meu caso...

Mulheres que colocavam em risco a sua vida em prol da de um filho, algumas era a vida delas e dos filhos, outras, a certeza de que essa criança iria enfrentar uma doença genética permanente e sem solução. Havia uma que se viu na necessidade de "fecharem com pontos" o colo do útero pra poder segurar a gestação. Outra que tinha vencido o cancro e que agora tentava a sua sorte: ser mãe. Uma miúda de 20 e poucos anos, com uma cardiopatia grave "engravidou" por vontade do marido. Já sabia que na hora do parto estariam além da equipe habitual de obstetras, uma equipe de cardiologia.

O meu puto nasceu bem, e mais tarde engravidei do mais novo... e aí tive que enfrentar outra rebordosa: o puto tinha uma estenose hipertrófica do piloro. Por outras palavras, o músculo (piloro) que liga o estômago ao intestino fechou-se, não permitindo que o puto se alimentasse como deveria de ser. Me vi perante uma anestesista à quem tinha que entregar o meu filho com 15 dias de vida, sem certezas de nada, eu no Hospital  D. Estafania e a minha família em Santarém sem saber de nada... Descrever o que me passava pela cabeça...é impossível, a angustia?? Enorme, embora consciente de tudo o que se passava, não assimilava nada.

Quando depois da cirurgia me vi na enfermaria com 6 bercinhos...meu choque foi ainda maior. Lá, pais como eu faziam o que podiam pelos seus bebés. Uma delas, a Melissa, com cerca de 5 meses era colostomizada (evacuava para um saco preso à barriguita), o Miguel de 8 meses tinha uma mal formação dos cálices renais (por onde a urina é eliminada dos rins) sempre vigiado e argaliado. A Carolina, apenas tinha tirado uma hérnia, o menino de 3 meses ao lado da cama do meu filho... não me recordo do nome, apenas dos pais. A mãe com 17 anos, o pai com 16, duas crianças responsáveis por um bebé. O último a chegar foi o Guilherme, a mãe veio de Abrantes, uma gestação de alto risco mostrou um tumor no fim da coluna vertebral do tamanho da cabeça dele. Mal nasceu na Alfredo da Costa, foi levado à Estefania e operado pelo Dr. Gentil Martins. Todas elas encontravam sorrisos para dar aos seus filhos...conheci a solidariedade de estranhos, que se revezavam entre eles quando um "pai" ou "mãe" se ausentava. Gostava de saber deles...


Meu avó alentejano, faleceu numa tremenda agonia de um cancro pulmonar. Lutou até ao último fôlego, numa dor desnecessária e injusta. Um homem que levou uma vida escorreita, honesta e simples. Não entendo o prolongar de uma situação, de dor e sofrimento... não só pra quem sofre de cancro, mas pra quem está sofrendo ao lado ao ver que nada pode fazer. Já alguma vez foram ao IPO?? Já nem digo para passarem pela ala infantil...é brutal.

Ontem morreu o actor António Feio, lutou até ao fim, até quanto pode contra uma doença que já nem deveria existir. Ele é uma pessoa que vai fazer falta à muita gente, não lhe tiro o valor nem o mérito. Mas há uma coisa que me incomoda muito.
Quando uma determinada actriz, apareceu nas capas de revistas como mãe coragem, pela gestação de alto risco depois de um cancro de mama... porque nunca ninguém se lembra de falar que todos os dias há mães e pais coragem pelos hospitais? Muitos deles obrigados a abandonar os seus trabalhos, saírem das suas terras e obrigados a viverem nos hospitais. Já há algumas casas de apoio para esses pais e mães que se vêem obrigados a encontrar um sorriso onde não há alegria, a brincar quando só lhes apetece gritar.

Uma luta contra a doença, uma vida que se perde é sempre uma contrariedade, não aceitamos e fazemos comparações inevitáveis dentre os maus que ficam e os bons que se vão. Acredito muito na nossa missão aqui no plano material. Acredito que temos escolhas muito pessoais que vão interferir com as próximas vidas. E acredito que o espírito nunca morre. Só muda de forma, de contornos e de opções. Não é aquela coisa de dizer que acredito na vida além da morte. Acredito que depois da morte, depois de um tempo de reflexão retornamos para mais uma jornada, de escolhas aleatórias, de opções muito nossas.

Não acredito em Karma, em pagamento de dívidas anteriores, porque isso é injusto. Se não lembramos dessas dívidas, como poderemos saber se estamos no caminho certo? Aliás, o que é certo e errado hoje? É o mesmo de há 200, 300 anos atrás?

Acredito nas possibilidades, na coerência, honestidade e justiça. O contrário é sempre uma opção, um atalho que alguns preferem seguir. Nem acredito que vamos pagar num inferninho qualquer as nossas falhas. Pagamos aqui, no reflexo das nossas acções, as retribuições da vida.

Não me despeço do António Feio, porque sei que um dia ele há de voltar. Mas queria deixar aqui a minha mais sincera homenagem para todos aqueles que são corajosos na sua dor anónima, que se agarram na esperança na melhora dos seus mais queridos familiares e amigos. Queria que o Guilherme, a Carolina, a Melissa, o Miguel e aquele menino que não lembro o nome estejam bem, fortes e alegres.

E mesmo que me custe imenso aceitar a perda de alguém que gosto demais, tenho que me lembrar que é só uma passagem...e que vamos sempre nos reencontrar.

Apareçam

Rakel.

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