Transparências


Por entre palavras que vão se trocando pelos dias sempre iguais, pelos gestos que antes tão simples se tornaram palavras, nos deixamos conhecer. Baixamos barreiras, passamos limites auto impostos, na tentativa de conseguir ser mais e melhor.

Damos o doce, o quente e o mais embriagador de nós, fazemos das nossas palavras e maneiras... o vício que vai prendendo quem bebe de nós. E surge então esta ligação estranha, um que diz: "Dá-me de beber..." por que há sempre a resposta: "Bebe de mim...". Essa necessidade, essa procura constante, se torna tão violenta e entranhada na alma, que já não carece de outras coisas, senão beber e dar de beber.

Há quem beba devagar, degusta ao poucos o sabor doce e forte, que os anos deram corpo, acentuaram notas mais exóticas e alegres. Antes de tocar com os lábios no liquido quente, fecham os olhos e inalam o perfume que contam histórias, lugares e estações. O sol, a chuva, o verde...o alto da montanha e o vale. Num só cheiro, um mundo todo... que faz o bouquet dessa bebida. E devagar, lentamente, deixa que o sabor toque a língua e transcenda do visível ao invisível. E durante muito tempo, sem hora marcada, sem dia certo para isso, juntos se deixam provar e sentir o doce, o quente...o melhor.

Mas há quem na força do vício de já ter bebido de tantas garrafas sabores diversos, já confunda aromas, as cores e o sabores. A única coisa que interessa é beber, beber até chegar ao fim, de escorrer o conteúdo sem saborear, sem saber distinguir cada nota, cada toque...
Quando isso acontece, quando o doce, o forte e quente que damos de nós se acaba, nada mais ficam que as borras, o nada de uma lembrança de uma  embriaguês acelerada. O que importava era beber, secar a fonte até nada mais se ver e sentir do que a transparência da garrafa vazia. 


Então...

Coloca-se a garrafa de lado, e procurar novos líquidos indistinguíveis, só pelo prazer da sensação da cabeça a rodar, do calor a descer pela garganta e provar de mais uma garrafa.
As garrafas vazias, vão se preenchendo de outras coisas, não mais de líquidos doces e quentes, nem de aromas exóticos...porque quem deu o seu melhor, já aprendeu que, quem bebe tão depressa e sofregamente, que se vicia tão rapidamente, fatalmente há de esvaziar tudo de uma vez, sem saber o que provou e sentiu.

Se agora, me encho de pregos e farpas, se a minha transparência só deixa ver que o que era doce e quente se foi...não se queixem. Não se enchem assim de aromas e doces quem foi bebido até a secar o fundo. Nem será num estalar de dedos que voltam a se completar um lugar, que foi deixado vazio, sem  mais nada do que a certeza, que nem todos sabem distinguir o bom do banal...

Agora, só tenho na minha transparência...pregos, pontas e tachas...

Doçuras, calor e alma...tão cedo não voltam a encher a minha garrafa.


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Foto da Stela Rato

Letras da Rakel

Apareçam



Comentários

  1. quando, a dada altura da vida, nos cruzamos com alguem e fazemos disso uma experiência unica, gostamos de pensar que para ele essa ligação é tambem algo muito especial.
    comigo foi assim, não tenho culpa de querer que o que para mim é um expoente mais elevado do que alguma vez tive na minha existência, seja valorizado por aquele que escolhi. é verdade que durante um tempo consegui esquecer, ou melhor,não me lembrar, que eu era apenas mais uma. especial? sim, nos momentos em que estava comigo.
    é dose apaixonarmo-nos por alguem cujo vicio é caçar.
    li este magnifico post e li-o à minha maneira, identificando alguem que não passará nunca pelas fontes de onde bebe sem deixar marca.

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  2. Mana...esta deixou-me arrepiada!!!...

    E devo dizer-te, interpretaste por inteiro o que eu quero transmitir nesta minha foto!

    Acho que nos conhecemos demasiado bem...este jogo, de palavras e imagens, está a funcionar maravilhosamente! Vamos continuar, é um desafio muito interessante.

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  3. Pois é mana...acho que não vejo nas fotos apenas o cadeirão, nem a garrafa com tachas...vejo as palavras, objectos que sem querer ganham a alma dos sentimentos. Mas saber ver e falar delas...isso é sensibilidade.
    Claro que vamos continuar! Adoro desafios...

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  4. Dulce, o giro desta experiência de fotos e palavras é justamente essa: cada qual faz a sua leitura pelo ângulo da sua sensibilidade.
    Daí que nem a minha interpretação é a certa nem a tua a errada. É tua e ganha o valor da tua experiência própria e vivida à tua maneira.

    Bjos

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