Olha-me...


Eis-me aqui parada... ninguém diria que por mim passaram dias melhores, pois agora, o que ficou de mim é apenas o esqueleto de carne arrancada, de pele queimada...Mas a minha alma...ahhh essa está aqui, apenas para quem pare um instante e olhe para mim.

Nos meus braços, já embalei o sono dos inocentes, olhei-os no rosto sereno e me encantei com a sua simplicidade. Nestes braços agora cansados, senti os dedos cravados de quem, na angústia da dor física, não gritou... apenas guardou fundo o que sentia e deu um sorriso ao mundo. Mas eu sentia , aqui nos meus braços, os seus dedos crispados na raiva, no silencio dos insultos ditos em voz baixa...

Mas também estes braços serviram de lugar de confidencias dos amantes, do prazer partilhado, um beijo e o olhar cúmplice de quem conhece como o outro pensa. Servi de porto seguro nas noites de insónia, acompanhei o sol a pôr-se devagar no horizonte na companhia de um livro, para depois ver nascer o dia pelas frestas de janela.

No meu colo já se sentaram, deixaram-se ficar silenciosamente a escuta da canção da chuva, do burburinho do fogo na lareira,  fazendo rimas desencontradas do tic-tac do relógio no aparador. A ausência de palavras, o aconchego do meu colo, deu aso às histórias que se passaram, outras que sonharam e muitas que não aconteceram. Ouvi os segredos de outros, contei os meus, guardei-os todos em cada pedaço de mim, em cada pequena curva que acolheu um sonho, uma alegria, uma risada...

Passaram por mim anos, passei um século, um novo milénio... e heis-me aqui, já sem o viço de antes, mas com a alma intacta, meus pés firmes e bem assentes no chão, mesmo que seja da rua, dos espaços vazios...tenho em mim as marcas das histórias. Minhas e dos outros, de quem me procurou quando o peso era demasiado grande...quando sabia bem descansar nos meus braços.


Olha-me! Vê-me! Sou mais do que um pano rasgado, das entranhas desfeitas e postas à vista de todos...enxerga-me e vê o que sou. Não me compare com outras que se fazem às dúzias, todas iguais, pré fabricadas em linhas de montagem da moda.

Escuta-me... porque eu agora, embora sem a beleza serena de antes, não vou ficar assim para sempre. E a minha beleza, num pano novo, numa leve camada de cor, me dará apenas um pequeno fogo de artificio. Porque o meu dom, a minha beleza é abrir os meus braços e acolher quem sempre me procura, é a minha sabedoria de muitos anos e a certeza que quem pára e me vê... não lamenta por mim. Sabem que uma estrutura sólida não se abate tão fácil.

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Foto da Stela  Rato - LxFactory

Letras da Rakel

Apareçam.

Comentários

  1. ...e em braços gratuitos de acolhimento eu permaneço seguro de garras que me esgadanham a alma.
    E em braços, crio laços.

    A beleza, procuro-a no gesto que delimita a mesquinhez de um olhar vazio.

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  2. Espectacular legenda para ilustrar e prestar merecida homenagem a um cadeirão que em tempos foi aconchego de alguem

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  3. Miocárdo...bem vindo!! A beleza se encontra em lugares tão evidentes e ao mesmo tempo escondidos, o problema é não saber ver...

    Bjo e vai aparecendo

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  4. Olá Dulce...esse cadeirão me ficou no goto, tanto que gostava de o ter pra mim, reforma-lo só um bocado...Um pano novo, umas pinceladas, mas nada gritante, apenas o suficiente pra coloca-lo ao lado da lareira e ser meu pouso nas horas em que me deixo ficar alheia ao mundo.

    Bjos

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  5. A isto é que eu chamo trabalho em equipa, e bem conseguido.
    Jinho

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  6. Catekista, se é um bom trabalho de equipa não sei, mas que queremos que cada um tenha a sua própria tradução do que lê e vê neste blog...isso sim, queremos.

    Bjos

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