Expirações


Ensinaram-me a falar, fizeram dos sons a minha primeira forma de exalar os meus pensamentos e desejos, os mais básicos da vida. Fui crescendo com a magia dos sons, aprendendo a decifrar os diferentes tons, a diferença nas palavras. Mas sabia poucas palavras para que a imaginação pudesse tomar corpo, para que todos os sonhos pudessem solidificar em algo que pudesse mostrar. Eu queria mostrar os meus sonhos e queria dividi-los com todos. Porque eu sonhava...

Com o passar do tempo, me dei conta que os sonhos podem ser feitos de outras matérias, mais que os sons da palavras e descobri as cores. Cada uma delas me passa uma emoção, um cheiro ou gosto, uma lembrança fraccionada e misturada com outras, fazendo delas uma história só minha.

E fui viajando, entre sons e cores, pintando nas telas da vida o meu modo de pensar e sentir, deixando paralisadas em quadrados e rectângulos... pequenas partes que tiro de mim. Fui enchendo de telas a minha vida, umas bem conseguidas, outras muito ruins, mas ia tentando cada vez mais conseguir colocar nela o meu eu, o que sentia. Fui pintando a minha versão dos sons, dos cheiros e das pessoas que me marcaram. Tons quentes misturados num fundo frio, apenas duas simples cores e noutras telas...tantas cores como num quadro Naif. Mas coloquei nelas o melhor de mim, me esforcei para que fosse fácil ler as minhas ideias, os meus sonhos. Era como expirar o ar dos pulmões, mas desta vez expirava o que me guardava a mente.

Pintei imensos quadros, a vida tem me dado inspirações e expirações suficientes para isso. Junto com as cores e pincéis, descobri as palavras no papel e da caneta...e me encantei com isso. Quando não podia pintar com cores aquilo que expirava de mim, tinha as letras que ficam alinhadas no meu pensamento. Porque não há cores para alguns conceitos e paixões, esses precisam da palavra correcta, da descrição absoluta e despida de distracções visuais. Até bem pouco tempo tempo, pensei que as minhas palavras, os quadros que pintei dos meus desejos e sonhos, os meus sons fossem entendidos...

Pensei que fosse capaz, em cada pincelada, transparecer a minha verdadeira natureza e que ela fosse vista mais do que uma fantasia. Expus a minha obra, desvendei tudo que sou, me dei, e deixei que me avaliassem...

As telas na quais te pintei, as tentativas de pôr em palavras a tua tradução e a minha, foram vistas da forma errada. Não queria aplausos nem bajulações, palavras corriqueiras ou elogios baratos. Queria e merecia reconhecimento. O teu reconhecimento...e não tens nada disso para me dar. Saber, que tomas as minhas telas, as minhas palavras como vulgares e banais, tirou-me a alegria.
Não quero mais guardar sonhos, nem a maneira como te pintei na minha cabeça. O modelo que fiz de ti, de nós e do mundo só existiu na tela... por isso...


Peguei então nas minhas telas, nas minhas cores, os meus sonhos e joguei na pira do esquecimento, ateei o fogo destrutivo, que não deixa mais nada do que um bocado de cinzas no chão. Fiquei com o olhar parado, como única espectadora deste funeral das cores, a única que realmente sentiu o desperdício de tempo e sentimentos sendo desfeito no fogo. E o meu olhar ficou turvo, as lágrimas que não chamei chegaram sem pedir licença, seria do calor da destruição? Seria pela morte dos sonhos e das cores? Ou da tristeza de quem deu o melhor de si e não foi o suficiente?

Quando o fogo apagou-se, meus olhos ainda turvos guardaram esta imagem, do que restou de ti, de mim e dos sonhos a cores. E até mesmo o facto de ter sido a única espectadora, de ter assistido sozinha o expirar de um ciclo me explicou.. que quem pinta com cores.. pinta para si mesmo. É uma acto solitário demais.

Mas vou continuar a pôr em palavras o meu eu, porque um dia, mesmo contra vontades alheias, vou mostrar não só as minhas fantasias, mas as minhas realidades...


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Foto da Stela Rato

Letras da Rakel

Apareçam...

Comentários

  1. Acho que estás a precisar de telas em branco...

    Beijo

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  2. Lagarto, sabes que quando escrevo estas coisas na primeira pessoa, não significa que apenas eu seja a que precise de telas em branco. E pra falar a verdade...deixei as telas de lado. Agora só me dedico às letras. Pra quem entendeu a alegoria, sabe que por enquanto até encarar uma tela em branco não há vontade nem há o que pôr nelas.

    Bjo

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