Sublimar a Vida

Lá pelos idos de 1901 nasceu a minha avó paterna, no seio de uma família de agricultores em Idanha- a -Nova, na vila do Rosmaninhal. Portanto, ela assistiu as convulsões (acho eu) de um país que passou da Monarquia para uma República. Digo acho eu, porque a minha avó Dolores por causa da arteriosclerose e da diabetes ficou assim um bocado pro lado do chalado... Via Joana D'Arc com cavalo e tudo no meio da sala de jantar...  :P portanto, tive poucas oportunidades de  uma conversa lúcida de outros tempos.

Mas o que sei dela através de outras pessoas da família é que, meu bisavô, contra todos os estereótipos da época, não criou seus filhos na senda habitual, as filhas aprendiam as lides domésticas pra casar e o filho seguiria os passos do pai. Não foi assim, colocou aquela gente toda pra estudar. Por isso mudaram-se para Castelo Branco quando a minha avó tinha 12 anos de idade. Depois disso, os filhos seguiram a vida de estudantes, meu tio-avô foi estudar matemáticas para Coimbra (mau gosto do catano) e as meninas, sem outra saída na altura para as moças... foram para o magistério: seriam senhoras professoras. Isto tudo bem no começo do Século XX. Tenho imenso orgulho desses meus bisavós que souberam ter visão,que mesmo numa época tão conturbada, é preciso investir no futuro.

Nessa altura não se esperava grande coisa do governo em questão de subsídios, apoios financeiros e injecções na banca... era cada um a fazer o seu trabalho o melhor que podia. E muita esperança no futuro. Contra todas as expectativas da época a minha avó Dolores não se casou cedo, muito pelo contrário, a vida de professora exigia que se deslocasse pelo país onde fosse necessária a sua presença.Casou-se quando tinha 26 anos com o meu avô Tista que tinha 18 anos... um garboso militar da Cavalaria. Ora, na época não haviam duas profissões tão mal pagas como aquelas que os meus avós tinham escolhido para suas. Mas era aquilo que gostavam de fazer e se empenharam a sério...

Hoje, passado um século, com meus dois avós já falecidos é este país que vemos: bancarrota, desemprego em massa, descontentamento, fome, miséria, e muita desconfiança... 

Mas as gentes aprenderam a sublimar as situações desagradáveis. Sobe o IVA pra 23% ? Que se lixe, o que importa saber é se conseguimos o Mourinho pra Selecção...

O IMI vai subir?... o que importa é saber como vai ser a casa do Big Brother desta edição. Vai haver cortes nos salários?? O que importa isso??? Já cá cantam os bilhetes pros U2!!!

O Governo nos pede pra apertar o cinto e fazer mais sacrifícios mas muda a frota toda automóvel do Estado? Quem será o favorito deste ano para os Ídolos??

Me pergunto até que ponto o país terá que chegar para que as pessoas saiam pra rua e protestarem contra todos os absurdos cometidos pelo governo desastroso que foi escolhido... pelo povo!!

Até quando vão ficar a esconder-se atrás da edição de aniversário da Caras, ou a comentar com o Record na mão os resultados do Benfica e o novo fôlego do Porto?

Lembro mais ou menos de uma música do Chico Buarque que fala mais ou menos que: será preciso que haja uma grande hecatombe para que o povo acorde...

Cortes nos remédios, cortes nos subsídios, corte nos salários, subida do IVA e demais impostos, do desemprego, da gasolina, do pão e da carne... do descontentamento. Só espero que comecem a apertar os calos dos militares.. talvez assim faça-se um novo 25 de Abril...

Me pergunto se, aqueles que fizeram a República no dia 5 deste mês  pudessem ver agora o país... o que diriam?

De qualquer forma, foi da minha avó Dolores que herdei o gosto da leitura e foi ela que me deixou um vasta biblioteca onde li Shakespeare pela primeira vez aos 12 anos (com muitos ph, e outras formas antigas de português), Eça de Queirós me foi vetado por ordem paterna, mas o resto devorei o que pude..Walter Scott inclusive. Do meu avô Tista a minha paciência infinita e as úlceras no estômago...nada é perfeito. Mas foram importantes para mim...

Apareçam

Rakel.